Livre-se do mau humor
O sentimento aumenta o risco para doenças
cardiovasculares, reduz a imunidade e dificulta a concentração, entre outros
prejuízos. Mas a ciência aponta os caminhos para combatê-lo
Cilene
Pereira, Mônica Tarantino e Monique Oliveira
Sabe aqueles dias
em que você acorda querendo brigar com a sombra, gritar com o filho porque ele
derramou uma gota de leite na toalha da mesa e responder “bom dia por quê?”
quando alguém simplesmente o cumprimentou? Você com certeza despertou sob o
domínio do mau humor, esse sentimento tão familiar a todos e infelizmente cada
vez mais comum. Embora para muitos possa parecer algo banal – sem repercussões
além da própria cara feia e do incômodo sentido por quem está por perto –, esse
estado de espírito traz muito mais prejuízos à saúde e à vida em geral do que
se imaginava. Um crescente campo de pesquisas está revelando que episódios de
mau humor causam no organismo danos importantes. “Ele provoca reações
fisiológicas que resultam em diversos problemas de saúde”, afirma a psicóloga
Ana Maria Rossi, presidente da seção brasileira da International Stress
Management Association (Isma-BR), entidade voltada para o estudo e
gerenciamento do estresse. Uma amostra do impacto pode ser observada nos
resultados de uma pesquisa realizada pela instituição. De acordo com o
trabalho, 85% dos indivíduos mal-humorados apresentam bruxismo ou rangem os
dentes, 12% são hipertensos, 42% não têm boa qualidade de sono e 68% apresentam
dificuldade de concentração. Além disso, eles sofrem o enfraquecimento do
sistema de defesa do corpo, ficando vulneráveis ao ataque de vírus e bactérias,
e mudanças metabólicas que contribuem para a maior contração dos vasos
sanguíneos, o que eleva ainda mais o risco para doenças cardiovasculares.
Esses danos são
basicamente consequência das mudanças provocadas pelo sentimento na química
cerebral. Ele é uma resposta emocional a algo considerado uma ameaça ao
bem-estar. Pode ser qualquer coisa: uma fechada no trânsito, um encontro com
uma pessoa desagradável. Entendido dessa maneira, o cérebro se organiza para
reagir a tal ameaça. Estruturas são acionadas e o resultado é a liberação em
cascata de hormônios como a adrenalina e o cortisol. “Isso faz com que o corpo
fique em estado de alerta máximo, com péssimo resultado para a saúde”, diz o
neurologista Fernando Gomes Pinto, do Hospital das Clínicas de São Paulo
(HC-SP).
Existem consequências
indiretas também. “O mau humor afeta os pulmões”, diz Ana Rossi. “Quando a
pessoa está tensa por causa dele, a expansão pulmonar durante a respiração fica
prejudicada. Há predominância da respiração torácica em lugar da abdominal, que
é mais profunda”, diz a especialista. Segundo ela, isso faz com que o pulmão
não funcione com eficiência. “Um dos resultados é uma sensação constante de
cansaço”, explica Ana Rossi. Uma pesquisa da Universidade de Brasília com 64
trabalhadores da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, por sua
vez, mostrou como o sentimento pode afetar a ergonomia no trabalho. De acordo
com o estudo, a disposição inadequada dos elementos e ferramentas para a
prestação de serviços leva a um ciclo de dores posturais e ansiedade, ao mesmo
tempo causas e consequências do mau humor dos funcionários. “As localizações do
guichê e da recepção de informação encontram-se inapropriadas. Os subordinados
não conseguem encontrar os chefes nem os colegas”, descrevem os autores. “Há um
predomínio da vivência do sofrimento com claros prejuízos fisiológicos
individuais”, pontuaram.
Até aqui, está-se
falando do mau humor normal, a que todos nós estamos sujeitos. Mas há um nível
ainda mais perigoso: quando ele vira de fato uma doença. Nesse caso, recebe o
nome de distimia. Trata-se de um mau humor que perdura por pelo menos dois
anos, acompanhado por alterações do sono, do apetite (para mais ou para menos)
e que encontra precedentes no histórico familiar. “Ela é um subtipo de
depressão”, explica o psiquiatra Táki Cordás, do Departamento de Psiquiatria da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Segundo o médico,
acredita-se que as pessoas com distimia já tiveram depressão em algum momento
do passado e ficaram com um resíduo. “A distimia traz prejuízos para as
relações e é incapacitante”, afirma o psiquiatra Luis Felipe de Oliveira Costa,
do Programa de Estudos de Doenças Afetivas (Progruda), do HC-SP.
O diagnóstico da
doença é geralmente tardio. “A pessoa só vai procurar ajuda quando a vida já
está muito comprometida”, explica Elie Cheniaux, pesquisador do Instituto de
Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E, até esse período, o
indivíduo já foi também exposto ao risco de desenvolver doenças
cardiovasculares, diabetes e depósito de gordura abdominal (condição que eleva
o risco para enfermidades cardíacas), entre outras questões. O cérebro também sofre.
“Pode haver redução intelectual resultante de perda neuronal”, explica o
psiquiatra Cordás. “O nível do hormônio cortisol fica muito mais alto, o que
mata alguns neurônios”, diz. O tratamento é similar ao da depressão crônica. No
entanto, há o registro de menos tolerância aos antidepressivos em pacientes
distímicos. “Mas hoje já há opções bem mais toleráveis”, diz o psiquiatra
Ricardo Alberto Moreno, também do Progruda. “Eles não afetam tanto a libido e
as náuseas são menos frequentes.”
Não há uma resposta
definitiva que explique, por exemplo, por que determinadas pessoas são mais
mal-humoradas do que outras. O que se sabe é que, a exemplo de diversas outras
características de personalidade, há o peso da genética e o peso do ambiente.
Ou seja, filhos de pais marcadamente mal-humorados têm mais chance de
manifestar o mesmo comportamento porque herdaram essa tendência e porque
crescem em ambientes nos quais o sentimento predomina. “O mau humor é uma
associação de temperamento, que nasce com você, com aquilo que você adquire com
o meio”, resume o psiquiatra Cordás.
Mais recentemente,
aprofundou-se uma linha de estudo que busca identificar outras causas para o
mau humor. Descobriu-se que algumas doenças podem estar envolvidas no seu
surgimento. A última pesquisa a revelar esse tipo de associação foi divulgada
na edição de maio da publicação científica “Diabetes Technology &
Therapeutics”. “Distúrbios de humor e sua relação com um controle ruim de
glicose, que pode levar a sérias complicações causadas pela diabetes, é um tema
de grande preocupação”, disse Satish Garg, da Universidade do Colorado (EUA).
“Mas ainda não sabemos o que vem primeiro: se as oscilações de humor estão por
trás da diabetes ou o contrário.” Um trabalho conduzido por cientistas da
Universidade de Illinois (EUA) deu uma indicação de pelo menos parte da
resposta. O estudo monitorou as concentrações de glicose em um grupo de
mulheres portadoras de diabetes tipo 2 e concluiu que grandes oscilações da
taxa de açúcar no sangue estão associadas a mau humor e baixa qualidade de
vida, segundo escreveram os autores da pesquisa. Em outros casos, a relação
está mais estabelecida. Um exemplo é a associação entre o hipertireoidismo e o
sentimento. A hiperatividade da glândula tireoide pode deixar o paciente mais
vulnerável a episódios de mau humor.
Todo o interesse
pelo tema é resultante de uma importante constatação científica obtida nos
últimos anos: o humor – neste caso, o bom – é mais vital para a nossa
sobrevivência do que se pensava. Em primeiro lugar, ele foi uma das razões que
possibilitaram a evolução da espécie humana, segundo uma corrente de pesquisas
a respeito do assunto. No início do mês, por exemplo, cientistas da
Universidade da Pensilvânia (EUA) divulgaram um estudo revelando que um bom senso
de humor é uma das principais características procuradas pelas mulheres em
possíveis parceiros – fator, portanto, que facilitou a reprodução humana ao
longo das eras. “Essa característica pode ser entendida como um sinal de que o
homem não é agressivo. A mulher entende que ele não a machucará nem à sua
prole”, explicou à ISTOÉ Garry Chick, da Universidade da Pensilvânia (EUA),
coordenador do trabalho. “E há pesquisas mostrando que os homens também gostam
de mulheres que riem de suas piadas”, complementou o pesquisador. Na visão do
psicólogo americano Peter Gray, professor do Boston College University (EUA), o
humor também serviu como elemento agregador quando o homem ainda vivia em
grupos. “Ele foi uma das maneiras encontradas para impedir brigas e discussões,
ajudando a manter a paz entre os indivíduos e, consequentemente, a
sobrevivência do grupo”, disse à ISTOÉ.
A outra razão vem
da certeza de seu impacto sobre a saúde – tanto o mau quanto o bom. Se o
primeiro, como demonstram as pesquisas, é bastante prejudicial, o segundo, ao
contrário, é como um bálsamo para o organismo. Há uma profusão de trabalhos
atestando seus benefícios. Na Universidade de Ohio (EUA), os cientistas
concluíram que o sentimento está associado a uma melhora na qualidade de vida
de portadores de doença pulmonar obstrutiva crônica, caracterizada por
dificuldade progressiva para respirar. Depois de analisarem as reações de 46
pacientes após assistir a vídeos divertidos, os pesquisadores concluíram que
aqueles que exibiram maior senso de humor reportaram menos sintomas de
depressão e ansiedade. “Acreditamos que os pacientes devem ser encorajados a
participar de atividades que despertem o bom humor”, afirmou à ISTOÉ Charles
Emery, líder do trabalho.
Na Austrália,
cientistas da University of New South Wales verificaram os efeitos positivos na
contenção de crises de agitação de pacientes com demência. Parte da equipe de
cuidadores de uma instituição que abriga idosos com demência foi treinada para
usar o humor no trato dos doentes. “Constatamos que o humor e a brincadeira,
quando usados regularmente, reduzem os níveis de agitação”, informou à ISTOÉ
Lee-Fay Low, responsável pelo trabalho. A mesma estratégia revela-se útil para
reduzir o medo de dentista, conforme demonstraram cientistas da Universidade de
Gotemburgo, na Suécia, e também aumentar a tolerância à dor, como apontou
estudo da Universidade da Califórnia (EUA). “Barreiras psicológicas podem ser
quebradas pelo humor”, afirmou Jenny Bernson, coordenadora da experiência sobre
o temor de dentista.
Ser bem-humorado
ajuda até a memorizar melhor as informações. Esta foi a conclusão a que
chegaram os cientistas da Universidade de Notre Dame (EUA) após experimento no
qual acompanharam a capacidade de memória de 66 pessoas depois de terem sido expostas
a desenhos animados. “Somos mais propensos a nos lembrar de coisas que achamos
engraçadas. Isso pode ocorrer porque reagimos ao humor fisicamente”, explicou à
ISTOÉ Alexis Chambers, líder da pesquisa. “Ele ativa áreas do cérebro
importantes para o processamento das emoções e da memória”, complementou. A
recomendação dos pesquisadores é usar o humor para auxiliar na memorização de
informações. Uma das sugestões, por exemplo, é criar uma história divertida e
embutir nela a informação a ser lembrada.
Diante de tantas
evidências, é mais do que necessário tentar se livrar do mau humor. É verdade,
porém, que, dependendo do dia, isso não é nada fácil. “Mas é preciso ter em
mente que parte dele pode ser manejada”, afirma a psicóloga Mônica Portella,
especialista em terapia cognitivo-comportamental (objetiva mudar padrões de
pensamentos que resultam em comportamentos prejudiciais), do Centro de
Psicologia Aplicada e Formação, do Rio de Janeiro. “É um trabalho constante. A
pessoa mal-humorada precisa se monitorar”, orienta.
Além de
disciplina, há estratégias simples que podem ser adotadas para trocar a feição
ranzinza por um rosto alegre. “As pessoas podem passar 15 minutos todas as
noites pensando em três coisas engraçadas que aconteceram durante o dia”,
sugeriu à ISTOÉ Willibald Ruch, da Universidade de Zurique, na Suíça. “Se
fizerem isso por um período, terão uma espécie de diário de humor ao qual
sempre poderão recorrer quando quiserem melhorar seu estado de espírito”,
complementou. Há dois meses, Ruch e sua equipe publicaram um trabalho segundo o
qual treinar algumas capacidades – manter o bom humor e expressar gratidão, por
exemplo – aumenta significativamente a sensação de bem-estar. E de felicidade.
Fonte:
http://www.istoe.com.br/reportagens/234273_LIVRE+SE+DO+MAU+HUMOR
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